terça-feira, 27 de maio de 2014

Sombras do Passado - Quarta Parte

   Al Fitzpatrick despertou de um sonho muito vívido. Aquele despertar repentino em que se abre os olhos completamente com um único movimento. Como sempre acontece nesses casos, ele demorou a sair do sonho mesmo com os olhos já abertos; a realidade ao seu redor ia se fazendo presente os poucos. Até que ele olhou à sua volta: estava no pequeno bosque em que acampara na noite anterior, a fogueira agora não mais que um pequeno monte de cinzas. Uma leve aurora começava a iluminar o céu anunciando o amanhecer.
   Se desvencilhando do cobertor, ele se sentou e por um instante ficou olhando para os restos da fogueira. No sonho que acabara de ter ele estava em um grande barco, em meio a um mar calmo, enorme. Havia um lampião no mastro bem acima dele que iluminava o convés e os arredores do grande barco. E todo o resto era escuridão. Mas como em todo sonho, mesmo sem poder ver para além da área iluminada, de algum modo ele sabia que estava navegando num mar sem fim. O que mais o impressionava era a velocidade terrível com que o grande barco viajava e o fato de isso não provocar quase nenhuma onda ao redor. No sonho ele tinha plena consciência da sua solidão. E então acordou.
   Pensou mais alguns instantes sobre o que acabara de sonhar, tentando pôr algum significado naquilo. Depois se levantou. Juntou alguns gravetos sobre as cinzas que tinham restado da fogueira para fazer fogo outra vez. Fazia uma semana agora que tinha deixado Bozeman para trás. Sabia que estava muito perto do seu destino. Florence, Montana. Esperava chegar no armazém de Thomas Elliot perto do meio-dia. O armazém era o local de encontro publicado no jornal. Fitzpatrick tinha certeza que a essa altura o encontro já tinha acontecido. Estava marcado para o dia 25 de setembro e esse era o amanhecer do dia 27.
   Depois de beber um pouco de café ele partiu. Saindo do pequeno bosque em que passara a noite adentrou pela imensa planície e seguiu em direção aos Montes Cleveland. Eles estavam agora bem delineados na linha do horizonte, quebrando a paisagem monótona que havia reinado até um dia antes: céu em todas as direções. 
   Fitzpatrick parava de meia em meio hora para olhar a imensa planície ao seu redor, utilizando seus binóculos. A cada vez que fez isso não encontrou nada de anormal. Melhor assim, pensou. O dia estava nublado como todos os outros antes desse e por volta do meio-dia ele começou a procurar por uma árvore. Desde que deixara o bosque para trás, pela manhã, ele não avistara nenhuma árvore. Mas agora ele sabia que estava perto de avistar uma. O armazém de Thomas Elliot ficava a duas horas de cavalo de Florence, no meio da planície e sempre fora conhecido por ter ao seu lado um grande carvalho. A única árvore num raio de 20 quilômetros. Logo avistou com seus binóculos um contorno na relva que, tinha certeza, era o grande carvalho que procurava. Estava bem na sua frente, quase na linha do horizonte.
   Uma hora depois Fitzpatrick podia avistar a árvore a olho nu, ao longe. Parou numa parte um pouco mais alta da planície, a duas milhas de distância do armazém. Apeou do cavalo e fez o animal se deitar. Pegou os binóculos e se agachou. A relva alta os protegia de algum xereta que pudesse estar por perto. Apontou os binóculos e viu com clareza a grande árvore e a antiga construção que não via há vinte e cinco anos.
   Naquele tempo o armazém de Thomas Elliot era uma etapa obrigatória para quem vinha das montanhas à planície. O velho Elliot era a cortesia em pessoa. Dezenas de testemunhas estavam prontas pra jurar sua honestidade. É de se imaginar a ira geral quando se soube que ele fazia parte do bando de assaltantes que aterrorizavam os mineradores. Elliot era um precioso informante do bando. Foi surpreendido pelos vigilantes quando arrumava suas coisas para escapar e enforcado no grande carvalho junto ao seu posto comercial. Fitzpatrick ficou pensando na última visão de Elliot: pendurado com a corda no pescoço, olhando para o barracão que tinha sido o seu ganha-pão por tanto tempo. Provavelmente morreu olhando para a placa que Fitzpatrick via perfeitamente agora, com a ajuda dos binóculos: THOMAS ELLIOT'S TRADING POST.
   Passou a tarde inteira observando o armazém e não viu nenhum sinal de vida. Tinha quase certeza que estava deserto mesmo. Não tinha cara de armadilha. Já estava quase escurecendo e ele decidiu ir até lá. Montou seu cavalo e se aproximou devagar. Passou ao lado do grande carvalho examinando o terreno. Perto da trave para os cavalos ele encontrou rastros recentes de cavalos ferrados. Pelo menos cinco. Apeou do cavalo e, de arma em punho, entrou decidido no armazém. Vazio.
   Mas com muitos sinais de habitação recente. Fitzpatrick foi andando pelo local. Havia algumas mesas velhas ainda de pé e somente uma cadeira. O balcão do bar ainda estava bem sólido e sobre ele havia duas garrafas vazias que não estavam empoeiradas como todo o resto. Além disso, havia algumas pontas de cigarro fumados recentemente. Vou passar a noite aqui e quando amanhecer irei a Florence. Não creio que haja algum atrasado que possa chegar no meio da noite.Em todo caso, estou dormindo com um olho só há uma semana.
   Foi uma noite sem sonhos e na manhã seguinte ele partiu. Estava ventando frio e ele não teve dificuldades em seguir os rastros dos cavalos. Em menos de duas horas chegou ao velho caminho que ia até Florence através de um pequeno grupo de colinas arborizadas. Em certa altura o caminho se dividia e Fitzpatrick apeou para examinar melhor o terreno. Os rastros dos cavalos continuavam pelo caminho que descia pelas colinas e que, ele sabia, terminava em Florence. Mas o caminho que ia dar nas minas nos arredores da região também parecia frequentado. Acho que estou entendendo o que se passa aqui, ele pensou. Montou e tocou o cavalo pelo caminho das minas.
   Não demorou muito até ele perceber que se aproximava de uma mina. Deixou o cavalo escondido nas árvores e se aproximou do local a pé. Chegou a um ponto onde as árvores terminavam e a subida continuava pela encosta, com o caminho levando para um barracão velho não muito longe da entrada da mina, bem característica com traves delineando a boca do túnel. Dava para ouvir nitidamente o som abafado de batidas de vinham lá de dento. A mina fora reaberta. Ao lado do barracão ele contou quatro cavalos. Fitzpatrick se deitou ao lado de uma das árvores e começou a procurar pela sentinela. Tinha certeza que devia haver um homem montando guarda.
   Não demorou para avistar o homem sentado numa pedra numa parte mais alta da encosta. Em vinte minutos, dando a volta pelas arvores, ele chegou por trás da sentinela. Se aproximou bem devagar e mesmo de costas percebeu que era um garoto de uns vinte anos. Sacou o revólver e encostou o cano da nuca dele:
   - Não se mova - ordenou Fitzpatrick. No susto, o garoto deixou cair o cigarro que fumava.
   - N-não ouvi você chegar - disse o garoto.
   Fitzpatrick desarmou-o e o conduziu pelo bosque, em direção a mina. 
   - Vamos pra mina - disse Fitzpatrick. - Não tente nada, garoto. Eu não estou brincando.
   Os dois foram andando pelas árvores até chegarem na grande clareira que circundava a mina. Caminhando em passo firme, Fitzpatrick conduziu o garoto até perto da entrada da mina. Mandou que ele parasse e perguntou:
   - Raymond Corbett está aí dentro, não está?
   - Sim, está. Como sabe?
   - Você vai chamá-lo. Faça ele sair sem levantar suspeitas.
   - Está bem - disse o garoto. E levantando a voz: - Ei, Ray! Precisa vir aqui fora dar uma olhada nisso!
   As batidas cessaram. Em pouco mais de um minuto o som de passos e vozes se tornou bem próximo. Fitzpatrick andou alguns passos para o lado, saindo de trás do garoto. Este ficou parado sem saber o que fazer. Em instantes, um homem com seus cinquenta anos e cabelos grisalhos saiu da mina. Outros dois vinham logo atrás.
   - Qual o probl... - ele começou a perguntar quando seus olhos foram do garoto para o homem três passos ao lado, apontando um revólver diretamente para ele.
   - Não se mova, Corbett. Solte o cinturão.
   Fitzpatrick reconheceu Raymond Corbett na mesma hora. Apesar de ser uma lembrança antiga, ele se lembrava muito bem do rosto do antigo xerife de Florence. Não tinha mudado muita coisa. Os outros dois não estavam armados.
   - Quem é você? - perguntou Corbett, desafivelando o cinturão e deixando-o cair.
   - Sou o filho de Ryan Fitzpatrick.
   Corbett ficou encarando Fitzpatrick, como que absorvendo aquela informação. Por fim, disse:
   - Ora vejam... E como me achou?
   - Vim por causa do seu enterro, Corbett - disse Fitzpatrick, tirando do bolso o recorte de jornal e entregando-o ao garoto, ao mesmo tempo em que sinalizava pra ele entregar o papel para Corbett.
   O velho xerife pegou o jornal e o leu. Uma expressão de surpresa tomou conta de seu rosto. Ele levantou os olhos do papel:
   - Quer dizer que... eles estão aqui?
   - Não encontrei nenhum deles, mas tenho certeza que estão em Florence.
   - Quantos são?
   - Uns cinco ou seis - disse Fitzpatrick. E acrescentou: - Mas vamos descobrir isso logo.
   Corbett o encarou demoradamente.
   - O que tem em mente?
   - Nós quatro - disse Fitzpatrick, indicando com a cabeça os dois homens que permaneciam imóveis e de mãos para o alto atrás de Corbett - vamos até Florence rever nossos velhos conhecidos.

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