quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Planícies

   Alguns meses já haviam se passado desde o dia em que Andrew Stafford saíra de Austin, Texas, para caçar três homens culpados por homicídio e roubo. Ele não estava sozinho; ia na companhia de Thomas Affeldt. Eles não sabiam se iam trazer os bandidos vivos. Provavelmente não. Na cabeça deles, gente como aquela era para ser caçada e morta. 
   Ambos eram rangers do Texas. Estavam na pista dos homens que haviam matado outro ranger durante o assalto a um banco em Oklahoma City. Já haviam passado por quatro estados, numa caçada que já estava se tornando longa demais. Agora estavam numa imensa planície. Era um fim de tarde de setembro e o frio entrava nos ossos. Há uma hora a planície havia mudado. Não era mais uma imensa extensão plana de prado e relva. A planície agora ondulava em pequenos montes e algumas colinas mais altas, embora a vegetação não mudasse nunca. Eram as Rolling Plains, na divisa do Montana com o Wyoming. O vento do Montana vinha das Rochosas e passava cortante pelos cavaleiros.
   - Aqui escurece cedo... Vamos parar ou avançar um pouco mais?
   - Acho melhor pararmos. Esse frio está piorando rápido.
   Stafford desmontou e começou a tirar a sela de seu cavalo. Affeldt fazia o mesmo. Durante a viagem os dois não costumavam falar muito; deixavam isso para a noite, ao redor da fogueira. Nas últimas duas semanas o tempo havia esfriado bastante e a pista dos três homens também. Isso não melhorava as coisas, mas desistir estava fora de cogitação. Pistas longas são assim: esquentam e esfriam, principalmente em territórios pouco habitados como aqueles. 
   Depois que comeram, Affeldt pegou um charuto e acendeu-o. Gostava de deixar o charuto queimar devagar enquanto o jogava pelos cantos da boca, sentindo o gosto do fumo. Observava Stafford relaxado ao lado do fogo, a cabeça apoiada na sela, pensativo. Affeldt vinha reparando em Stafford todas as noites e quase sempre via a mesma coisa: apesar da postura relaxada, sua expressão era de rancor. Stafford com certeza não faria questão de pegar os três homens vivos e Affeldt concordava com ele. Devo estar com a mesma raiva no rosto, mas não vejo porque não tenho um espelho comigo, pensou ele.
   - Ainda deve faltar uns quatro dias até Bozeman - disse Stafford.
   - Se tudo correr bem - respondeu Affeldt. - Lá vamos achar pistas mais frescas.
   - Não importa se não encontrarmos. Não vou largar dos pés deles.
   - Se não tivermos pistas frescas deles em Bozeman pode ficar difícil.
   - Pode mesmo - disse Stafford, pensativo. - Aqueles bastardos teriam todo o território do Noroeste pra se esconder.
   Affeldt ficou matutando aquela hipótese. Bozeman poderia ser o começo da última parte de uma busca já bem longa. Ou poderia ser apenas mais uma etapa da caçada. No fundo, isso não importava nem pra ele, nem pra Stafford. Os dois estavam em busca dos assassinos de um amigo, não de mais um ranger que desconheciam.
   - Já mandou quantos pra forca, Thomas? - perguntou Stafford.
   Affeldt se surpreendeu com a pergunta.
   - O juiz é quem manda, não eu.
   - Você entendeu.
   - Não sei... Nunca contei esse tipo de coisa. Você conta?
   - Não, não conto. Apenas pensei nisso agora.
   Stafford estava pensando na captura dos três homens. Não iam capturá-los para serem enforcados, claro. A coisa ia terminar de um jeito mais prático. Do jeito certo, ele pensou. Mas se pegou perguntando quantos homens, afinal, já havia ajudado a mandar pra forca. Não sabia a resposta.
   - Bom, eu acho que uns trinta - continuou Affeldt. - Talvez um pouco menos.
   - A conta parece razoável - disse Stafford, lentamente. - Já se arrependeu de algum?
   Affeldt olhou para o ranger do outro lado da fogueira e franziu o cenho: - Arrepender? Claro que não. Rangers fazem isso, não? 
   - Sim, fazemos. Não quis dizer bem arrepender... - Stafford pensou um instante, procurando a palavra certa. - Quis dizer um caso em que você acaba se sentindo estranho. Ou um pouco deslocado - Ele pensou mais um pouco. - Não sei explicar direito.
   Affeldt aspirou um pouco de seu charuto: - Já mandou a pessoa errada pra forca, Andrew?
   Stafford não respondeu de pronto. Continuou olhando pro céu e seu rosto se livrou um pouco da raiva que o acompanhava há meses. Ele se virou um pouco, apoiando-se num dos braços.
   - Já tive que mandar um menino pra forca.
   - Um menino?!
   - Não, não uma criança. Era um frangote de uns quinze ou dezesseis anos. Talvez dezessete...
   - O que ele fez?
   - Ele tinha matado uma garota de quatorze anos.
   Affeldt nada disse. Continuou olhando para Stafford.
   - Na época, as pessoas disseram que foi um crime passional. Falavam sobre paixão e desprezo, esse tipo de coisa. O garoto disse que não. Disse que fizera a coisa certa e que não lamentava nada. Não sei o que ele entendia por certo ou errado, mas isso não importava. E nem me importava o motivo daquilo tudo -Stafford olhou para a fogueira um instante. - Pareceu que, de repente, a cidade tinha muito mais gente que de costume. Os jornais, as pessoas... só se falava daquilo.
   Affeldt aspirou mais um pouco do seu charuto.
   - Onde foi isso?
   - Lá pelas bandas de Colorado Springs.
   - Foi há muito tempo?
   - Uns dez anos atrás.   
   - Você viu o enforcamento?
   - Vi.
   Stafford ficou em silêncio por um tempo, pensando. Affeldt estava impressionado com aquilo, embora soubesse que coisas como essa acontecem com uma certa freqüência. Pensou na mãe da tal garota e de como ela se sentiu ao ver o menino no patíbulo. Deve ter pensado na justiça sendo feita, mas, com os diabos!, era apenas um menino!, pensou Affeldt.
   - Quando o garoto foi enforcado, eu me senti estranho - disse Stafford. - Sabia que fizera meu trabalho, que fizera a coisa certa. Mas, por outro lado, me senti deslocado. Era como se a lei aplicada naquele frangote não fizesse sentido, mesmo eu sabendo que era o certo. Entende o que eu quero dizer?
   Affeldt fez que sim com a cabeça: - Parece que o mundo não faz sentido quando um garoto é colocado na frente de um juiz.
   - É... muito menos no patíbulo, com uma gravata de corda.
   Stafford voltou a se deitar com a cabeça apoiada na sela, pensando. Ele e Affeldt estavam caçando três homens com o desejo de realizar uma vingança. Não sabia o que iam encontrar no final daquilo tudo, só sabia que tinha que ser feito. 
   - Vamos ter a oportunidade de vingar nosso amigo - disse Stafford.
   - Nem todo mundo tem.
   - Nem todo mundo tem... - repetiu Stafford.
   - Às vezes, fico pensando nisso. 
   - Nisso o quê?
   - Nosso amigo morreu com uma bala nas costas. Não teve chance de se defender.
   Stafford demorou a responder. Por fim, disse: - Ao menos ele teve outras chances antes disso. Fico pensando naquelas pessoas que passam a vida limpando o chão de um saloon, ou lavando pratos... Quando elas levam uma bala nas costas, o último pensamento delas deve ser: "Eu nunca tive minha chance".
   Affeldt suspirou: - Não vejo a hora de acabar logo com isso.
   - Eu procuro não pensar nas coisas desse jeito. Estamos indo fazer a coisa certa, Thomas. Somos rangers, mas porque andar acompanhado da lei em casos como esse? Aqueles bastardos nunca respeitaram lei alguma. Vão querer se proteger atrás dela logo agora?
   - Concordo com você, Andrew, mas nós não estamos indo recuperar o tempo que tiraram do nosso amigo.
   - Sei que não - respondeu Stafford, desgostoso. - Não dá pra recuperar o tempo que alguém tira de você. Ele fica sempre do lado de fora da porta.
   - Às vezes me pergunto onde uma vingança pode nos levar - disse Affeldt. - Tenho a impressão que é mais uma daquelas coisas da vida em que se cria uma expectativa enorme e, depois, a gente vê que não representa grande coisa.
   - Espero que não.
   - Eu também.
   Affeldt terminou seu charuto, jogou o que restara dele na fogueira e se deitou, apoiando a cabeça na sela. Puxou o cobertor pra junto do corpo, tentando se proteger melhor do frio. Depois, enquanto Stafford alimentava a fogueira, pensou na história do garoto. Mais um que não teve sua chance, pensou. Pensando bem, ele teve, se é que se pode colocar a coisa dessa maneira. Sabia que Stafford fizera a coisa certa, mas não conseguia se ver no lugar do amigo. 
   Na manhã seguinte, partiram para Bozeman. 

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