quarta-feira, 24 de julho de 2013

Sombras do Passado - Terceira Parte

   Apesar de a tarde já estar se encaminhando para o seu final, ainda havia um bom par de horas de luz.
  O xerife Al Fitzpatrick avistou o rancho ao longe, um pouco ansioso para conversar com o tio. Estava levando o jornal consigo. O jornal com o anúncio fúnebre que, afinal, era o motivo da sua visita. Durante o trajeto para o rancho ele vinha pensando qual seria a reação do tio ao ver o anúncio. De qualquer modo, agora ele estava bem perto de saber.
   Conforme ia se aproximando do rancho, ele avistou alguém que estava no alpendre, na entrada da casa. Não demorou muito para reconhecer que era Dolores, a empregada mexicana de seu tio.  Ela olhava para o cavaleiro que chegava ao longe, com uma mão sobre os olhos. Dolores era uma mexicana baixa, morena e que começava a atingir uma certa idade. Havia anos ela cuidava do tio, e muito bem. Um homem velho numa cadeira de rodas sempre precisa de alguma atenção por perto. E era o que a mexicana fazia. Ela logo entrou na casa.
   Fitzpatrick foi chegando nas proximidades do rancho e ao mesmo tempo em que passava por sob a grande placa de entrada, com SILVERBELL escrito em grandes letras pretas, o tio ia saindo da casa, girando as rodas da cadeira com as mãos, e parando perto dos degraus de entrada. Al acenou para o tio, apeou e amarrou a montaria na trave para os cavalos. Caminhou devagar, com o jornal em mãos, até parar na frente do tio.
   - Dolores ainda enxerga longe.
   - É. Parece que os olhos dela não envelhecem.
   - Quase tão bons quanto os de um apache -  brincou o sobrinho.
   - Quase tão bons - repetiu o tio.
   Al olhou para o tio sentado na cadeira de rodas. Não parecia mais velho que da última vez, embora não o visse há um certo tempo. A barba tinha mais fios brancos agora, mas não muito mais que os negros. Estava volumosa e bem feita. Os cabelos é que tinham rareado bastante.
   - Como tem passado, John? - peguntou Al.
   - Sempre nessa maldita cadeira - ele respondeu. Hesitou por um instante e continuou. - Estou surpreso que você não mudou nada. Dizem que o cargo de xerife envelhece um homem.
   Al nada disse e se limitou a dar um pequeno sorriso.
   O tio apontou para o jornal que ele tinha em uma das mãos:
   - Veio me manter informado?
   - Num certo sentido. - disse o xerife, olhando para o jornal. - Há algo aqui que talvez lhe interesse.
   John Fitzpatrick olhou para o sobrinho e coçou a barba por um momento. - Quer um café?
   - Eu gostaria.
   - Então entre. Dolores fez um que ainda está fresco.
   Eles entraram, o tio na frente. Passando pela sala, Al reparou que ela quase não tinha mudado. O sofá estava na mesma posição, assim como as duas poltronas. Em cima da lareira estava a Spencer do tio, pendurada na parede. Passando pelo corredor eles chegaram na cozinha, que ficava nos fundos da casa. Era bem ampla e ainda era possível sentir um leve cheiro de café.
   - O café está ali - disse John, apontando para uma mesa ao lado da pia.
   - Quer também?
   - Sim, um pouco.
   O xerife serviu duas xícaras. O café ainda estava quente, soltando uma leve fumaça. Ele entregou uma xícara ao tio, que estava ao lado da mesa principal da cozinha. Depois se recostou na pia e bebeu um gole. Após um breve silêncio, o tio falou:
   - O que há de interessante nesse seu jornal?
   Al folheou o jornal, parou em determinada página, dobrou o jornal em dois, deu três passos em direção ao tio e estendeu o jornal para ele, indicando o local onde estava o anúncio fúnebre. O tio pegou o jornal e pousou os olhos no local indicado pelo sobrinho. Após um instante seu rosto adquiriu um tom de surpresa. Ele leu, ainda com a surpresa no rosto. Ao terminar, comentou:
   - É um jornal de Tucson de quinze dias atrás. - disse, devagar e em tom pensativo, verificando a borda superior. - Onde conseguiu isso?
   - Toda semana o telégrafo recebe um desses. Eu sempre dou uma olhada.
   O tio voltou os olhos para o anúncio fúnebre, como se o relê-se.
   - Com certeza é o canalha do Corbett. Mas... - ele olhou para o sobrinho, tirando os olhos do jornal - por que ele voltou?
   - Também me fiz a mesma pergunta. - respondeu ele, olhando para o tio.
   - E também não encontrou resposta. - disse o tio. E acrescentou - É estranho. Quantos anos já se passaram?
   - Vinte e cinco anos.
   - Tempo à beça.
   Por um momento os dois ficaram em silêncio. O sobrinho olhando para o tio e este olhando para o jornal, pensativo. Por fim, John perguntou:
   - O que está pensando fazer?
   - Antes de vir pra cá, dei algumas ordens a Mendez. Ele vai se sair bem na minha ausência.
   John Fitzpatrick pousou o jornal na mesa e encarou o sobrinho.
   - Olhe - disse, por fim - eu entendo o que está querendo fazer. Eu também estava lá com seu pai e de certa forma morri também. - Ele passou as mãos pelos braços da cadeira de rodas. Por um instante ele olhou para o lado e sorriu, tomado por uma lembrança antiga. - Seu pai e eu costumávamos ir para o curral pela manhã e ficar montando nos bezerros de lá. Aquela coisa de quem fica mais tempo no lombo do bicho. Depois de uns tombos a gente ficava com a roupa suja de esterco. E sua avó ficava furiosa. - Seu sorriso se alargou. - Eu me lembro dela correndo atrás da gente, louca da vida. Ela tinha os olhos muito verdes, muito bonitos. Seu avô sempre dizia que os olhos dela lembravam a cor das águas do rio Colorado.
   Ele parou um instante, pensativo. Depois respirou fundo e olhou para o sobrinho: - O ponto é que você tem que estar certo do que quer fazer. Nossa família foi vítima daqueles bandidos, mas talvez não haja necessidade desse acerto de contas.
    O xerife olhou para o tio demoradamente.
   - O que você faria se pudesse ir lá?
   - Não sei. - respondeu o tio. - Nada, provavelmente nada.
   Al ergueu as sobrancelhas: - Estou surpreso de te ouvir falando isso.
    O tio girou um pouco a cadeira, olhando pela janela.
   - Eu aprendi que enquanto a gente passa o tempo tentando reaver as coisas que tiraram de nós, mais e mais coisas vão embora. Depois de um tempo tudo o que você quer é estancar o vazamento. Seu pai e eu nunca fomos obrigados a participar do grupo de vigilantes, nós entramos por conta própria. - Então ele se virou para o xerife. - O que você está sentindo, essa vontade de se vingar, não é nada de novo. A vida no oeste é dura com as pessoas e elas sentem vontade de bater de volta na primeira oportunidade. Mas as coisas podem não sair do jeito que você imagina.
   - Disso eu sei, John - respondeu Al. - O mundo não gira ao nosso redor, por mais tentador que essa ideia possa ser nesse momento. - Ele hesitou e disse: - Mas Deus me deu a oportunidade da vingança. Eu preciso ir lá e fazer justiça.
   - Com o poder que Ele nos concedeu - disse John, mais para si mesmo do que para o sobrinho. Al tinha o costume de ler a bíblia por conta do tio.
   John Fitzpatrick sabia que era inútil tentar demover o sobrinho da ideia. Ele tinha perdido o pai por conta daqueles bandidos e também tinha visto um tio inválido por todos aqueles anos por conta desses mesmos bandidos. E ainda era muito jovem para entender certas coisas. 
   Ele refletiu por alguns instantes e disse:
  - Bom, já que está tão decidido só posso lhe dar alguns conselhos.
   - Sou todo ouvidos - disse o xerife.
   - Um anúncio fúnebre, no código daqueles bandidos, significava inimigos a eliminar. Ray Corbett está vivo, mas alguém descobriu e botou o aviso no jornal. E pode apostar que não foi só nesse que você me trouxe. Ray era o chefe do bando e fugiu com todo o ouro. Por isso, quem espalhou esse anúncio com certeza era do bando na época.
   - Eu concluí isso também. Ray Corbett era o xerife de Florence, não era?
   - Exato. Tão xerife quanto você é hoje. - John sorriu. - Mais que os antigos cidadãos de Florence, os verdadeiros inimigos do velho xerife são os bandidos que ele passou pra trás. Quem era do bando e ainda estiver vivo para ver o anúncio vai querer participar do funeral do querido Ray.
   Al Fitzpatrick refletiu por uns instantes, como que organizando aquelas informações.
   - Como você pretende chegar lá? - peguntou o tio.
   - Vou até Tucson e pegar o primeiro trem pro norte.
   - Por onde vai começar?
  - Pelo armazém do velho Elliot. Mas não vou participar do encontro dos velhos amigos.
   Al tomou o último gole de café, posou a xícara na pia e pegou o jornal que estava sobre a mesa. Virou para o tio: - Algo mais?
   - De importante acho que não. Você é esperto e sabe se virar.
   - Bom, então acho que vou indo.
   - Eu te acompanho até a porta.
   Ambos, tio e sobrinho, foram até a entrada da casa. O pôr do sol estava se aproximando.
   - Tome cuidado, Al. Flagstaff precisa de um xerife como você.
   O xerife não respondeu de pronto. Caminhou até o cavalo, guardou o jornal no alforje da sela e foi até onde o tio estava , puxando o animal.
   - Não se preocupe, John. Vou me cuidar.
   Ele montou em seu cavalo.
   - Cumprimente Dolores por mim.
   - Pode deixar.
   Com um último aceno, o xerife partiu. 
   


    

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Sombras do Passado - Segunda Parte

   Com um forte sacolejo, o trem da Union Pacific parou em seu destino final, Bozeman. Al Fitzpatrick desceu do comboio e se dirigiu aos vagões dos animais. Estava cansado, mas satisfeito de estar finalmente no Montana depois de uma longa viagem. Dali em diante o percurso seria feito a cavalo até seu destino, Florence.
   Cerca de duas horas após seu desembarque, o xerife de Flagstaff já estava montado e a caminho de Florence. Pegou o recorte de jornal e conferiu a data do encontro: 25 de setembro no armazém de Thomas Elliot, perto de Florence, Montana. A viagem deveria levar uma semana, por isso ele estava um dia atrasado. Não faz mal, pensou, meu encontro é em Florence e não no armazém do velho Elliot. Ficou imaginando quantos deles estavam vivos e tinham visto o anúncio no jornal, como ele. No fim das contas, não importava muito. Saberia disso dali um semana, com um pouco de sorte.
   Avançar sozinho pela planície não era seguro e exigia suas precauções. Bem antes do anoitecer ele parou e usou seus binóculos para observar ao redor da imensa planície, onde não se via uma árvore. A medida que o sol ia se pondo, Fitzpatrick observava toda a extensão da planície ao seu redor em busca de algum sinal de acampamento ou fogueira. Algum sinal de vida. Após uma última conferida, guardou seus binóculos e começou a tirar a sela do cavalo. Teria que fazer uma fogueira por conta do vento frio do Montana, que vinha das Rochosas.
   À beira da fogueira, enrolado em seu cobertor, ele pensava em Florence. O vento frio o fazia recordar da cidade vinte e cinco anos atrás. Ele era apenas um garoto de nove anos e escutava sua mãe:
   - Ande depressa, Al. Não olhe pra cima.
   Eles estavam voltando para casa pela rua principal e o garoto olhava ao redor. Vários corpos estavam pendurados ao longo das traves do grande Montana Estábulo, enforcados. O vento frio balançava os corpos para frente e para trás, em pequenas oscilações que faziam as cordas rangerem. Mesmo no inverno rigoroso, a decomposição era avançavada e o mal cheiro se espalhava.
   Naquela época, Florence não era a cidade-fantasma que viria a se tornar. Era o tempo da corrida do ouro no Montana, e Florence era maior e mais rica do que Dodge City. Sempre existiram dois métodos para achar ouro. E o mais rápido deles não era arrebentar as costas escavando nas montanhas. Quem agia assim era vítima dos assaltantes e ficava com um punhado de moscas na mão. A mortalidade na planície era alta. Ainda não existiam as ferrovias e transportar cargas de ouro pelas montanhas, que já era dificílimo, ficou praticamente impossível. O vale do rio Cascavel nos Montes Cleveland, o Vale da Morte, o desfiladeiro do Cervo Preto; todos os comboios que partiam para Idaho e Utah tinham que passar por um desses três pontos. Os assaltantes eram bem informados e sempre havia alguém lá, esperando. Tentar sair do Montana com ouro significava dar de cara com eles.
   Um dia, os mineradores organizaram o transporte de ouro em um grande comboio de voluntários e a sorte mudou. A maioria dos bandidos foi morta na tentativa de assalto e uns poucos caíram vivos nas mãos dos voluntários. Com as informações extraídas, em pouco tempo se formou um comitê de vigilantes, liderados por um coronel aposentado da cidade, visto que o próprio xerife de Florence estava envolvido nos roubos. Uma caçada humana se iniciou na cidade. Várias pessoas suspeitas foram arrancadas de suas casas e enforcadas.
   Em um dos últimos enforcamentos coletivos, quando Florence já estava ficando vazia e sem vida, com os primeiros sinais da cidade-fantasma que viria a ser, o pai e o tio de Al Fitzpatrick foram baleados. Um grupo de bandidos adentrou o Montana Estábulo, atirando e berrando, e libertou dois homens. Partiram instantes depois, numa ação rápida. O pai de Fitzpatrick morreu no estábulo e seu tio foi atingido na espinha. Depois de uma semana lutando contra a febre, sobreviveu, mas ficou para sempre incapacitado numa cadeira de rodas.
   Em pouco tempo, a família se desfez dos últimos negócios e partiu de Florence para sempre. Poucos meses depois, a cidade ficou deserta.
   Enrolado em seu cobertor, o xerife pensava no passado de Florence. Quase de maneira inconsciente, ele enfiou a mão no bolso da camisa e retirou um recorte de jornal; o anúncio fúnebre que o colocara no caminho da vingança, depois de tantos anos:

   Todos os amigos e fiéis companheiros choram a
   partida prematura de 

                  RAYMOND CORBETT

   A quem se lembrar dele, jovem e INOCENTE, pede-se
   ir à sepultura do 

                 VELHO, QUERIDO RAY

   Levar um sinal de reconhecimento. Encontro no 
   armazém de Thomas Elliot, perto de Florence, 
   Montana, em 25 de setembro. 
    

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Sombras do Passado - Primeira Parte

   O xerife Al Fitzpatrick cavalgava de volta para Flagstaff, ao longo da pista que levava ao rancho Silverbell. Era um pôr do sol de início de outubro e Fitzpatrick pensava na conversa que acabara de ter com o tio, no rancho. E também pensava, agora, na viagem que estava para começar a fazer. Era uma longa viagem até o Montana, mesmo fazendo boa parte dela de trem. Mas isso não o preocupava.
   Há muito tempo não pensava em Florence, mas o anúncio fúnebre que lera no jornal do dia anterior mudou tudo. Pensou com calma no que fazer e bem antes do amanhecer já estava de pé. Delegou algumas tarefas a Mendez, o vice-xerife, e passou o dia organizando sua viagem. No final da tarde foi ao rancho do tio para lhe mostrar o recorte de jornal que fizera despertar velhos ódios e recordações. Era um assunto que dizia respeito aos dois, embora somente ele, Fitzpatrick, pudesse fazer algo a respeito.
   Agora, ao voltar do rancho, pensava na conversa que tivera. O tio e Mendez eram os únicos que sabiam da viagem, mas só o tio sabia o motivo. Mais cedo Mendez havia perguntado quando ele ia voltar:
   - Não sei, Robert - disse o xerife, montando em seu cavalo.
   - Mas o que vou dizer às pessoas? Em algum momento elas vão se perguntar onde está o seu xerife.
   - Sua tarefa é cuidar disso.
   - Mas...
   - O cargo de vice-xerife tem suas obrigações, Robert - disse Fitzpatrick, se virando no cavalo. - Adeus.
   Fitzpatrick sabia que Robert Mendez podia se virar muito bem em sua ausência. Isso não era motivo para preocupação. Planejava partir de Flagstaff em, no máximo, três horas. Não queria que o vissem partindo e isso também iria evitar um encontro com Mendez, que certamente esperava uma partida pela manhã.
   Observando a paisagem, o xerife pensava no que estava por vir. Muito além do horizonte, muito além daquela fina linha de montanhas estava seu destino. Florence, Montana. Após vinte e cinco anos ele iria voltar lá, embora agora devesse restar bem pouco de Florence. Era uma cidade-fantasma. Mas o anúncio fúnebre indicava que em breve ela receberia visitantes bem vivos.
   O sol já estava abaixo da linha do horizonte e ele começou a avistar a cidade. Olhava através da imensidão daquela paisagem desértica feita por Deus, se lembrando dos detalhes da conversa que acabara de ter. Se Deus o havia colocado no caminho certo para conseguir sua vingança; se Deus havia contemplado um de Seus filhos com a chance de fazer justiça era obrigação dele fazer Sua vontade. Mas Fitzpatrick sabia que a ação divina não se estendia para além disso. Teria que tomar cuidado com os inimigos que não tivera oportunidade de enfrentar há vinte e cincos anos. Com essa gente não se brinca, pensou ele.
   O xerife entrou na cidade pela rua principal e amarrou seu cavalo na frente da delegacia. Se dirigiu para os degraus, entrou rapidamente e fez os últimos preparativos. As celas estavam vazias e isso era uma sorte. Poderia deixar a porta da delegacia encostada e com a chave em cima da mesa, conforme tinha planejado. Mendez chegaria por volta das dez da noite para fazer a troca de guarda.
   Já era noite quando o xerife Fitzpatrick deixou Flagstaff, duas horas depois de entrar na delegacia. Era o começo de uma longa viagem em que ele iria reencontrar o passado. E quem sabe o que mais?, pensou. Sua estrela de xerife não estava pendurada na camisa, como de costume. Ia guardada no bolso.
   Quando, mais tarde, Robert Mendez se aproximou da delegacia para fazer a troca de turno, logo percebeu que alguma coisa estava errada. Estava tudo escuro lá dentro. Se aproximou, testou a maçaneta, e viu que a porta estava apenas encostada. Abriu a porta chamando pelo xerife. Nada. Acendeu o lampião e percorreu os olhos pelo escritório. Não havia nada fora do lugar e as celas estavam vazias, como naquela manhã. Seus olhos recaíram sobre a mesa, onde a bíblia de Fitzpatrick, que ele conhecia tão bem, estava aberta. A chave da delegacia estava pousada sobre as páginas. Mendez deu um sorriso e entendeu o que havia acontecido. O xerife de Flagstaff tinha partido, sabe-se lá pra onde e deixando a cidade sob sua responsabilidade.
   Ele pousou o lampião sobre a mesa, pegou a chave, olhou a página em que a bíblia de Fitzpatrick estava aberta e confirmou que ele havia mesmo partido. Em todos aqueles anos como vice-xerife ele havia aprendido que Al Fitzpatrick sempre lia aquela passagem da bíblia antes de partir em alguma perseguição ou missão perigosa. O cargo de xerife tem seus riscos, Robert. Era o que ele teria dito. Com esse pensamento na cabeça, Mendez leu a passagem bíblica. Era o Salmo 120:

O Senhor é teu guarda,
  o Senhor é teu abrigo, sempre ao teu lado.
De dia, o sol não te fará mal;
  nem a lua durante a noite.
O Senhor te resguardará de todo o mal;
  ele velará sobre tua alma.
O Senhor guardará os teus passos,
  agora e para todo o sempre.

   
   

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Pueblo Feliz

   Frank Doyle estava parado na soleira da porta, as pernas entreabertas, observando o outro lado da rua. Uma mão estava bem no meio do  cinturão e a outra segurava um copo com uísque. Olhava para uma das casas de adobe de dois andares chamada Cantina Castilla.
   - Parece que lá dentro está animado - disse ele, escutando algumas risadas vindas da Cantina e tomando mais um gole do uísque.
   Atrás dele, a mulher sentada numa mesa levantou os olhos e observou as costas de Frank. Ela sabia que aquele tipo de comentário não esperava uma resposta. Ele dizia mais pra ele mesmo do que qualquer outra coisa.
   - Animado até pra valer uma visita.
   Mais um comentário que não esperava resposta. A mulher desviou os olhos para a garrafa de uísque em cima da mesa. Frank andara bebendo o dia todo. Era fácil notar pela fala meio pastosa e seu jeito de andar. Ele chegara mais cedo ao povoado, Pueblo Feliz, que só não era mais um dos tantos povoados miseráveis do Novo México porque ficava na pista que ligava Roswell a Albuquerque.
   Ela era uma mulher bonita e com o corpo firme, e era fácil notar sua ascendência mexicana na pele morena e no contorno do rosto. Morava numa casa de barro. Há uns anos, depois que o marido morreu, começou a sentir a casa vazia. Até que Frank chegou. Sabia que ele era casado, mas isso não importava pra ela. E nem a incomodava. Quando Frank chegava ela voltava a assumir o papel submisso de quando o marido era vivo. Ele trazia boas peças de algodão, porcelana e chocolate. Mas ela achava uma pena ele não ser atraente.
   Ele batia nela, mas ela aceitava. Os homens eram assim e ela sabia disso. Num mesmo homem havia o bom e o mau. Ela sabia que Frank era o tipo de homem que falava pouco em casa, somente o necessário para começar e terminar uma briga com a mulher. Agora, por exemplo, ela achava que Frank estava pensando nela. Pensando no porquê ela existia. Pensando que se ela simplesmente fosse embora, ele poderia ser homem outra vez. Esses eram os homens que  podiam justificar praticamente tudo que faziam por acharem que eles eram os heróis da sua própria história; nunca olhavam para si mesmos, mas fugiam de casa quando podiam.
   Frank terminou seu uísque e voltou para a mesa caminhando devagar e com calma. Posou o copo, pegou seu chapéu e disse, sem olhar para a mulher:
   - Vou na cantina.
   - Não quer jantar antes?
   Ele não respondeu e saiu para a rua, fechando a porta devagar. Ela achou melhor não insistir. Não queria apanhar sem motivo de novo, como da última vez que Frank fora lá.
   Frank atravessou a rua e parou na frente da Cantina. Olhou um pouco para dentro e viu que havia um bom movimento. Vamos conferir as muchachas da Cantina, pensou ele. Deu mais uns passos e entrou. Como de costume, várias cabeças se voltaram para ver o novo visitante. Alguns cumprimentaram Frank por conhecerem-no de vista, outros fizeram acenos com a cabeça. Frank escolheu uma mesa perto da janela, à esquerda. Se sentou na cadeira colada na parede e olhou a Cantina.
   O clima estava realmente animado. Havia quatro garotas circulando e a mesa perto do balcão tinha quatro homens falando alto e cantando. Bebiam e chamavam as garotas com frequência. As outras mesas estavam  quase todas ocupadas.
   Frank estava no segundo copo de uísque quando aconteceu: uma das garotas caminhava com uma bandeja. O homem da mesa ao lado se levantou abruptamente e a garota desviou. Ao fazer isso, perdeu o equilíbrio, cambaleou para o lado e derrubou uma caneca de cerveja em Frank. 
   A Cantina silenciou subitamente com o barulho. Todos viram Frank se levantar com o ventre, a virilha e parte da perna esquerda empapados de cerveja.
   - Desculpe, senhor - disse a garota, também se levantando. - Fui tentar desviar dele, mas acabei perdendo meu equilíbrio. Perdão.
   - Limpe logo essa sujeira - disse ele. 
  - Sim, senhor - ela disse, saindo para as dependências da Cantina, enquanto os outros voltavam para suas conversas.
   Frank se sentou. Terminou seu segundo copo quando viu a garota retornar com um balde e um pano. Ela se agachou e começou a limpar o chão. Quando terminou, Frank disse:
   - Agora pode começar a me limpar.
   - Vou pegar um pano limpo pro senh... - ela disse, se virando para ele enquanto falava. Ela interrompeu a frase quando viu o que ele fazia. Frank estava de pé, com um revólver Remington apontado pra ela.
   - Quero ver você lamber essa roupa e tirar a cerveja toda dela. Quero minhas roupas do mesmo jeito que elas estavam quando entrei aqui. 
   A mulher, ainda abaixada, o olhou assustada. Então baixou a cabeça e disse: - Senhor, me desculpe. Posso trazer um pano limpo, se quiser.
   - Não, não - disse Frank, já com ar de riso. - Essa boca linda é melhor que um pano.
   A mulher levantou a cabeça. Tinha lágrimas nos olhos: - Posso lavar suas roupas se as deixar comigo amanhã. 
   Foi então que Frank notou que tudo estava quieto demais. Olhou em volta e viu que a Cantina inteira olhava a cena. Um homem que estava bebendo no balcão pousou seu copo e começou a caminhar lentamente em direção a eles. Era de meia-idade, cabelos castanhos e um pouco mais baixo que Frank.
   - Não se aponta uma arma pra uma  mulher, homem - disse ele, calmamente.
   - Mesmo? - perguntou Frank.
   - Não, não mesmo. - disse ele, avançando mais uns passos e parando a dois metros de Frank.
   - Tem razão. Não preciso de uma arma pra resolver minha conta com essa galinha - disse Frank, colocando a Remington no coldre. Olhou para o homem e viu que no coldre dele havia uma Smith & Wesson.
   Frank se virou para ele e o encarou. Atrás dele, ouviu a garota se levantar e sair. A Cantina inteira olhava a cena: - Há uma coisa que também não se faz - disse Frank. - Se meter no problema dos outros.
   - Não podia ficar olhando e deixar você fazer aquilo.
   - Parece que só você achou que tinha que se importar.
   - Alguém tinha.
   Frank desceu a mão para bem perto da Remington.
   - Ainda é permitido apontar uma arma para um homem, não é?
   - Sim, mas dizem que é bom ser mais rápido que ele.
   - E como é que a gente descobre?
   - Só tem um jeito de descobrir.
   Ouviu-se a voz nervosa do barman:
   - Cavalheiros, por favor... - mas foi tudo que ele conseguiu dizer.
   Frank baixou a mão direita para seu revólver, mas o outro foi mais rápido. Ele avançou rápido, e usou sua mão esquerda para segurar a mão direita de Frank, que estava segurando o cabo da Remington, mas não tinha tido tempo de sacar. Com o braço direito o homem deu uma cotovela violenta na cabeça de Frank, que cambaleou para o lado, bateu de costas na parede e voltou um passo para a frente, oscilante. Por um instante Frank parou. Então se recuperou e começou a sacar sua arma. O outro homem estava pronto, sacou sua Smith & Wesson e deu um tiro que atingiu Frank no olho direito. O disparo detonou ensurdecedor dentro da Cantina e o som ainda estava no ar quando Frank bateu outra vez de costas na parede e caiu para frente, ficando imóvel no chão e deixando uma grande mancha de sangue na parede, com pequenos pedaços de miolos e cabelo grudados nela.
   Por um momento tudo foi silêncio.
   - Meu Deus... - disse alguém.
   O homem guardou sua arma no coldre e olhou para a Cantina: - Todos viram que foi legítima defesa. Ele sacou primeiro.
   - Todos vimos, forasteiro, mas ele não era um homem qualquer. Você pode ter problemas - disse o barman.
   - Se for o caso, disso eu cuido depois. Quanto te devo?
   - Dois dólares.
   Ele deixou duas moedas no balcão e depois saiu. Foi até o estábulo com calma, pegou seu cavalo, pagou e se dirigiu para a saída de Pueblo Feliz. Montou, acendeu um cigarro e se foi sem remorsos na consciência.