quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Pueblo Feliz

   Frank Doyle estava parado na soleira da porta, as pernas entreabertas, observando o outro lado da rua. Uma mão estava bem no meio do  cinturão e a outra segurava um copo com uísque. Olhava para uma das casas de adobe de dois andares chamada Cantina Castilla.
   - Parece que lá dentro está animado - disse ele, escutando algumas risadas vindas da Cantina e tomando mais um gole do uísque.
   Atrás dele, a mulher sentada numa mesa levantou os olhos e observou as costas de Frank. Ela sabia que aquele tipo de comentário não esperava uma resposta. Ele dizia mais pra ele mesmo do que qualquer outra coisa.
   - Animado até pra valer uma visita.
   Mais um comentário que não esperava resposta. A mulher desviou os olhos para a garrafa de uísque em cima da mesa. Frank andara bebendo o dia todo. Era fácil notar pela fala meio pastosa e seu jeito de andar. Ele chegara mais cedo ao povoado, Pueblo Feliz, que só não era mais um dos tantos povoados miseráveis do Novo México porque ficava na pista que ligava Roswell a Albuquerque.
   Ela era uma mulher bonita e com o corpo firme, e era fácil notar sua ascendência mexicana na pele morena e no contorno do rosto. Morava numa casa de barro. Há uns anos, depois que o marido morreu, começou a sentir a casa vazia. Até que Frank chegou. Sabia que ele era casado, mas isso não importava pra ela. E nem a incomodava. Quando Frank chegava ela voltava a assumir o papel submisso de quando o marido era vivo. Ele trazia boas peças de algodão, porcelana e chocolate. Mas ela achava uma pena ele não ser atraente.
   Ele batia nela, mas ela aceitava. Os homens eram assim e ela sabia disso. Num mesmo homem havia o bom e o mau. Ela sabia que Frank era o tipo de homem que falava pouco em casa, somente o necessário para começar e terminar uma briga com a mulher. Agora, por exemplo, ela achava que Frank estava pensando nela. Pensando no porquê ela existia. Pensando que se ela simplesmente fosse embora, ele poderia ser homem outra vez. Esses eram os homens que  podiam justificar praticamente tudo que faziam por acharem que eles eram os heróis da sua própria história; nunca olhavam para si mesmos, mas fugiam de casa quando podiam.
   Frank terminou seu uísque e voltou para a mesa caminhando devagar e com calma. Posou o copo, pegou seu chapéu e disse, sem olhar para a mulher:
   - Vou na cantina.
   - Não quer jantar antes?
   Ele não respondeu e saiu para a rua, fechando a porta devagar. Ela achou melhor não insistir. Não queria apanhar sem motivo de novo, como da última vez que Frank fora lá.
   Frank atravessou a rua e parou na frente da Cantina. Olhou um pouco para dentro e viu que havia um bom movimento. Vamos conferir as muchachas da Cantina, pensou ele. Deu mais uns passos e entrou. Como de costume, várias cabeças se voltaram para ver o novo visitante. Alguns cumprimentaram Frank por conhecerem-no de vista, outros fizeram acenos com a cabeça. Frank escolheu uma mesa perto da janela, à esquerda. Se sentou na cadeira colada na parede e olhou a Cantina.
   O clima estava realmente animado. Havia quatro garotas circulando e a mesa perto do balcão tinha quatro homens falando alto e cantando. Bebiam e chamavam as garotas com frequência. As outras mesas estavam  quase todas ocupadas.
   Frank estava no segundo copo de uísque quando aconteceu: uma das garotas caminhava com uma bandeja. O homem da mesa ao lado se levantou abruptamente e a garota desviou. Ao fazer isso, perdeu o equilíbrio, cambaleou para o lado e derrubou uma caneca de cerveja em Frank. 
   A Cantina silenciou subitamente com o barulho. Todos viram Frank se levantar com o ventre, a virilha e parte da perna esquerda empapados de cerveja.
   - Desculpe, senhor - disse a garota, também se levantando. - Fui tentar desviar dele, mas acabei perdendo meu equilíbrio. Perdão.
   - Limpe logo essa sujeira - disse ele. 
  - Sim, senhor - ela disse, saindo para as dependências da Cantina, enquanto os outros voltavam para suas conversas.
   Frank se sentou. Terminou seu segundo copo quando viu a garota retornar com um balde e um pano. Ela se agachou e começou a limpar o chão. Quando terminou, Frank disse:
   - Agora pode começar a me limpar.
   - Vou pegar um pano limpo pro senh... - ela disse, se virando para ele enquanto falava. Ela interrompeu a frase quando viu o que ele fazia. Frank estava de pé, com um revólver Remington apontado pra ela.
   - Quero ver você lamber essa roupa e tirar a cerveja toda dela. Quero minhas roupas do mesmo jeito que elas estavam quando entrei aqui. 
   A mulher, ainda abaixada, o olhou assustada. Então baixou a cabeça e disse: - Senhor, me desculpe. Posso trazer um pano limpo, se quiser.
   - Não, não - disse Frank, já com ar de riso. - Essa boca linda é melhor que um pano.
   A mulher levantou a cabeça. Tinha lágrimas nos olhos: - Posso lavar suas roupas se as deixar comigo amanhã. 
   Foi então que Frank notou que tudo estava quieto demais. Olhou em volta e viu que a Cantina inteira olhava a cena. Um homem que estava bebendo no balcão pousou seu copo e começou a caminhar lentamente em direção a eles. Era de meia-idade, cabelos castanhos e um pouco mais baixo que Frank.
   - Não se aponta uma arma pra uma  mulher, homem - disse ele, calmamente.
   - Mesmo? - perguntou Frank.
   - Não, não mesmo. - disse ele, avançando mais uns passos e parando a dois metros de Frank.
   - Tem razão. Não preciso de uma arma pra resolver minha conta com essa galinha - disse Frank, colocando a Remington no coldre. Olhou para o homem e viu que no coldre dele havia uma Smith & Wesson.
   Frank se virou para ele e o encarou. Atrás dele, ouviu a garota se levantar e sair. A Cantina inteira olhava a cena: - Há uma coisa que também não se faz - disse Frank. - Se meter no problema dos outros.
   - Não podia ficar olhando e deixar você fazer aquilo.
   - Parece que só você achou que tinha que se importar.
   - Alguém tinha.
   Frank desceu a mão para bem perto da Remington.
   - Ainda é permitido apontar uma arma para um homem, não é?
   - Sim, mas dizem que é bom ser mais rápido que ele.
   - E como é que a gente descobre?
   - Só tem um jeito de descobrir.
   Ouviu-se a voz nervosa do barman:
   - Cavalheiros, por favor... - mas foi tudo que ele conseguiu dizer.
   Frank baixou a mão direita para seu revólver, mas o outro foi mais rápido. Ele avançou rápido, e usou sua mão esquerda para segurar a mão direita de Frank, que estava segurando o cabo da Remington, mas não tinha tido tempo de sacar. Com o braço direito o homem deu uma cotovela violenta na cabeça de Frank, que cambaleou para o lado, bateu de costas na parede e voltou um passo para a frente, oscilante. Por um instante Frank parou. Então se recuperou e começou a sacar sua arma. O outro homem estava pronto, sacou sua Smith & Wesson e deu um tiro que atingiu Frank no olho direito. O disparo detonou ensurdecedor dentro da Cantina e o som ainda estava no ar quando Frank bateu outra vez de costas na parede e caiu para frente, ficando imóvel no chão e deixando uma grande mancha de sangue na parede, com pequenos pedaços de miolos e cabelo grudados nela.
   Por um momento tudo foi silêncio.
   - Meu Deus... - disse alguém.
   O homem guardou sua arma no coldre e olhou para a Cantina: - Todos viram que foi legítima defesa. Ele sacou primeiro.
   - Todos vimos, forasteiro, mas ele não era um homem qualquer. Você pode ter problemas - disse o barman.
   - Se for o caso, disso eu cuido depois. Quanto te devo?
   - Dois dólares.
   Ele deixou duas moedas no balcão e depois saiu. Foi até o estábulo com calma, pegou seu cavalo, pagou e se dirigiu para a saída de Pueblo Feliz. Montou, acendeu um cigarro e se foi sem remorsos na consciência. 
   

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